Virose, Ganância e Tragédia

José Manoel Ferreira Gonçalves
Engenheiro, advogado e jornalista

Uma jovem morta pela negligência

Um drama de 102 dias chegou ao fim da pior forma possível no Guarujá: com a morte de Caroline Costa Rolim, de apenas 20 anos, vítima de um surto viral ligado à contaminação da água do mar. A tragédia, noticiada pelo UOL nesta quarta-feira (16), expõe não só os perigos invisíveis de uma crise sanitária mal administrada, mas também os efeitos corrosivos de decisões políticas e empresariais motivadas pela ganância.

A jovem, que lutava pela vida desde janeiro, contraiu uma infecção gastrointestinal severa após frequentar a praia da Enseada. Ela é uma entre centenas de moradores e turistas acometidos pela mesma virose, que teve origem associada ao despejo irregular de esgoto sem tratamento adequado — fruto direto da má gestão de uma empresa privada de saneamento.

Tecnologia avançada inovação: a promessa não cumprida

A privatização de serviços básicos costuma vir acompanhada de promessas de modernização, eficiência e tecnologia avançada inovação. Contudo, o caso do Guarujá mostra que nem sempre esse discurso corresponde à realidade. Em vez de investir em infraestrutura e transparência, a SABESP, concessionária dos serviços de água e esgoto da cidade priorizou cortes de custos e lucros exorbitantes.

Pior do que a negligência empresarial, foi o papel vergonhoso desempenhado pelo poder público. Em vez de proteger a população, o prefeito preferiu teatralizar segurança — e chegou ao cúmulo de tomar (ou fingir que tomava), diante das câmeras, um copo de água retirada da praia para “provar” que tudo estava bem. A encenação beirou o deboche. Enquanto isso, jovens como a que perdeu a vida estavam sendo expostos a vírus, fezes e risco de morte.

A ausência de responsabilidade custa caro

Em democracias maduras, uma tragédia como essa levaria a renúncias, demissões e investigações sérias. Mas no Brasil, em especial quando interesses econômicos estão em jogo, a indignação muitas vezes é abafada por campanhas publicitárias e acordos de bastidores. A privatização, que prometia “tecnologia avançada inovação”, entregou contaminação, silêncio e sofrimento.

As denúncias sobre o despejo de esgoto irregular vinham sendo feitas há meses por moradores e ONGs locais. Foram ignoradas sistematicamente. A própria Cetesb, agência ambiental do estado, chegou a emitir alertas sobre a balneabilidade das praias. Ainda assim, nada foi feito — e o turismo, este sim, foi protegido com afinco. Afinal, quem precisa de saúde pública quando há diárias de hotéis a garantir?

Privatização sem fiscalização é carta branca para tragédias

Esse caso escancara o perigo de delegar serviços públicos essenciais a empresas privadas sem a devida fiscalização. Não se trata de ser contra a inovação tecnológica, mas de exigir responsabilidade. Água limpa não é luxo. É direito básico. Quando empresas colocam lucro acima da vida humana — e quando prefeitos compactuam com isso —, temos não apenas incompetência, mas cumplicidade.

A jovem que morreu lutou por 102 dias. Sua história precisa ecoar como um grito de alerta. Privatizar saneamento sem compromisso social é uma sentença silenciosa para milhares de brasileiros que vivem à mercê da ganância e da omissão.

O preço da omissão

É estarrecedor pensar que, em pleno 2025, ainda se morra por beber água contaminada numa cidade litorânea. Que tipo de país permite isso? Que tipo de governante encobre esse tipo de crime com um gole de teatro?

Mais do que indignação, precisamos de ação. A sociedade civil precisa cobrar responsabilidades, exigir transparência e lembrar que vidas não podem ser tratadas como efeitos colaterais da busca desenfreada por lucro. A morte dessa jovem deve se tornar símbolo de uma luta: por mais respeito, mais responsabilidade e menos encenação.

*José Manoel é pós-doutor em Engenharia, jornalista, escritor e advogado, com uma destacada trajetória na defesa de áreas cruciais como transporte, sustentabilidade, habitação, educação, saúde, assistência social, meio ambiente e segurança pública. Ele é o fundador da FerroFrente, uma iniciativa que visa promover o transporte ferroviário de passageiros no Brasil, e da Associação Água Viva, que fortalece a participação da sociedade civil nas decisões do município de Guarujá. Membro do Conselho Deliberativo da EngD

Declaração de Fontes:
“As informações contidas neste artigo foram obtidas a partir de fontes confiáveis e verificadas, incluindo reportagem do portal UOL, comunicados da Cetesb e relatórios de organizações ambientais atuantes no litoral paulista.”

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